Entrevista a Mariana Marques

23-10-2025 16:28

 

A jurista aponta a falta de literacia jurídica como um dos principais problemas da justiça portuguesa, em conjunto com a morosidade e os elevados custos de acesso. Mariana Marques rejeita qualquer possibilidade de acabar com as garantias de defesa dos cidadãos no processo civil e processo penal e também defende que os juízes devem ter tempo para analisar cada caso concreto. 

 

"O princípio do contraditório e o direito de defesa são pilares fundamentais do direito processual português" 

 

A morosidade e os elevados custos de acesso continuam a ser os principais problemas da justiça em Portugal? 

A morosidade e os elevados custos de acesso são, sem quaisquer dúvidas, problemas relevantes. No entanto, penso que se salienta de forma mais pertinente a falta de literacia jurídica dos cidadãos. A título de exemplo, em vários casos, os litígios são passíveis de resolução nos tribunais arbitrais, cujo custo é inexistente ou insignificante, mas não há conhecimento desta vertente nem noção de que as sentenças arbitrais têm o mesmo valor das sentenças proferidas por tribunais judiciais de primeira instância. 

Concorda que os problemas da justiça também são um reflexo do que se passa no resto da sociedade portuguesa? 

Sim. A justiça tem deixado de ser uma prioridade para a maioria dos cidadãos, sendo frequentemente mencionada apenas em tom de crítica — muitas vezes pouco construtiva — ou quando alguém se vê diretamente envolvido num processo. Essa perceção distante e a desvalorização social ajudam a explicar a falta de investimento público e político no setor, penso que deveria ser reforçada a sua qualificação enquanto um dos pilares do Estado de Direito. 

Quais foram as alterações às leis fundamentais que têm colocado em causa o funcionamento da justiça? 

Nem todas as alterações legislativas têm prejudicado o funcionamento da justiça, sendo que algumas revelam um avanço importante. Um bom exemplo é a alteração ao artigo 69.º-C do Código Penal, em 2023, que alargou de 15 para 20 anos o limite máximo da proibição do exercício das responsabilidades parentais em casos de crimes sexuais praticados contra menores. Esta mudança permitiu acautelar situações em que, por exemplo, o crime é cometido contra uma criança muito pequena, garantindo que a interdição das responsabilidades parentais se mantenha durante toda a sua menoridade, sem necessidade de recorrer a uma ação cível autónoma. Assim, as reformas legislativas, quando feitas corretamente e tendo em conta os interesses da sociedade, são favoráveis. 

O Processo Civil seria mais célere caso não houvesse a possibilidade de contestar ou replicar uma ação? 

De forma alguma porque eliminar a possibilidade de contestar ou replicar uma ação violaria diretamente o princípio do contraditório e o direito de defesa, que são pilares fundamentais do direito processual português e europeu.  

O fim dos julgamentos nos tribunais superiores também tornava o processo penal mais rápido? 

Neste caso, penso que a questão não é tornar o processo mais rápido. O processo penal é sempre julgado pelo tribunal de primeira instância, sendo que, em regra, os tribunais superiores apenas intervêm em sede de recurso. É verdade que essa possibilidade pode tornar o processo mais moroso, mas não se pode simplesmente eliminá-la. O recurso é uma garantia fundamental dos cidadãos que não concordam com a decisão, e é isso que assegura um sistema justo e equilibrado. Daí não valerem recursos infinitos, mas sim o princípio do duplo grau de jurisdição, uma vez que, em regra, só há possibilidade de recorrer de uma decisão judicial uma vez (duas, em situações extraordinárias). 

Deveria haver um teto máximo para as custas judiciais de forma a ajustar o apoio judiciário à realidade económica das pessoas? 

Sim, faria sentido haver um teto máximo para as custas judiciais. O apoio judiciário existe, mas muitas vezes é complicado e nem sempre cobre todos os custos e, ademais, é sabido que não é eficaz, em muitos dos casos. Assim, as pessoas com menos recursos ficam impedidas de aceder à justiça, pelo que limitar o valor das custas ajudaria a ajustar o sistema à realidade económica dos cidadãos. 

Por que razão os advogados continuam a ser os únicos agentes da justiça que estão dependentes dos prazos? 

Não é bem assim, uma vez que os juízes também têm prazos, mas funcionam de forma interna, em sede de avaliação, o que condiciona e pauta o ritmo das suas decisões. Já os advogados têm prazos mais “visíveis”, porque a não observância pode afetar diretamente os direitos dos seus clientes. Daí resultar a ideia para os cidadãos de que os juízes não têm qualquer fiscalização no que concerne aos limites temporais das suas decisões. No entanto, existem outros tipos de prazos na justiça, que influenciam o funcionamento do sistema de formas diferentes. 

Os magistrados deveriam estar sujeitos a prazos peremptórios e cominatórios? 

Não creio que os magistrados devam estar sujeitos a prazos peremptórios e cominatórios como os advogados, uma vez que, em grande parte das decisões, estão em causa inúmeros documentos, testemunhos, provas periciais, entre outros. Assim, poderia ficar em causa a análise cuidadosa do caso e a justiça per se, que é a finalidade máxima do processo.