Entrevista a Sara Galina Barbosa

12-11-2025 19:32

Sara Galina Barbosa sempre gostou de interagir com os outros, mas foi a vontade de viajar ainda mais que a fez optar pela carreira de assistente de bordo. A chefe de cabine revelou um enorme gosto por todas as fases do curso, nomeadamente o CRM, embora sendo necessário alguma experiência para lidar com as questões de emergência do avião e das pessoas.   

  

“Fico surpreendida que os passageiros não levem a sério as instruções de segurança”  

  

Como nasceu a vontade de abraçar a profissão de assistente de bordo?  

Sempre gostei de interagir com os outros, conhecer pessoas novas, e sempre fui curiosa pela aviação. Quando, em 2010, fiz um programa de intercâmbio no Brasil, ganhei a vontade de viajar mais. Quando regressei a Portugal, comecei a ver opções para ingressar na carreira de assistente de bordo e passados uns meses estava a passar pelo processo de entrevista e subsequentemente a começar o curso inicial.  

O que mudaria no trajeto que efetuou até agora?  

Não teria ido para a faculdade simplesmente porque era esperado, e teria iniciado esta carreira mais cedo.  

Qual é o único aspeto que manteria até ao último momento do exercício da profissão?  

A interação com as pessoas, sejam elas passageiros ou colegas de trabalho.  

O que gostou mais de aprender sobre a regulamentação aérea na parte teórica do curso?  

Gostei bastante dos procedimentos operacionais e de emergência. É extremamente interessante perceber a razão pela qual certos procedimentos estão em prática, o que pretendem evitar, e que a maioria deles existe porque no passado a falta deles já levou a um incidente ou acidente.    

Consegue explicar como funciona o Crew Resource Management (CRM) ?  

Sendo também instrutora de CRM, vou tentar explicar do modo mais claro possível. Vamos pensar nos procedimentos como preto no branco. No entanto, ao trabalharmos com outras pessoas, todas elas com diferentes níveis de experiência, educação, idade, etc, bem todos reagimos da mesma maneira sob pressão, ou em interação com os outros. O CRM nada mais é que um conjunto de ferramentas e competências que nos ajudam a lidar com a maioria das situações que potencialmente podem acontecer a bordo, dado que os manuais não conseguem prever todos os cenários. O CRM permite-nos também interagir com os colegas, sejam eles de cabine ou pilotos, para que haja um verdadeiro trabalho em equipa cujo principal objetivo é a segurança dos passageiros, tripulação e aeronave. Dá-nos ferramentas para lidar com desvios, erros, ou negligência, para que sejam parados estes comportamentos antes de se tornarem uma ameaça à segurança. O CRM foca-se em competências não técnicas, como trabalho de equipa, comunicação, liderança, gestão de carga de trabalho, solução de problemas e processos de decisão, que tendo como grande base os procedimentos, nos ajuda a lidar com as situações sempre com a segurança em mente e sem grandes desvios. Um bom CRM, assegura que perante a mesma situação, com o mesmo nível de pressão, um tripulante ou piloto, reagirão de maneira semelhante. A maioria das ferramentas de CRM foram desenvolvidas, por especialistas em comportamento humano, psicólogos, e baseadas em limitações da performance humana. Nos dias de hoje, a maioria dos incidentes ou acidentes têm uma componente de CRM que falhou. Acho por isso cada vez mais importante o investimento em treino de CRM.  

Qual foi a principal aprendizagem que teve relativamente aos procedimentos de emergência?  

Já experienciei algumas situações consideradas mais sérias, e o que aprendi é que o conhecimento profundo dos procedimentos de emergência e o refrescamento dos mesmos, ajuda bastante, dado que é completamente verdade que o nosso treino entra em cena assim que ele é necessário.   

Como se costuma preparar em termos emocionais para socorrer uma pessoa que esteja em perigo de vida durante um voo?  

Acredito que apesar do treino, esta é uma das situações mais delicadas, porque a reação depende muito de experiências pessoais passadas. Alguém que teve um familiar ou pessoa próxima que passou por uma paragem cardiorrespiratória, não vai conseguir lidar da mesma maneira como alguém que não tem essa experiência. Pessoalmente, tento ao máximo focar-me na parte biológica, no próximo passo do procedimento, e não nas emoções.  

Conhecer culturas e locais dos quatro cantos do mundo ainda é o principal aspeto positivo da profissão?  

Depois de mais de 14 anos nesta profissão, para mim já não é este. Reconheço que é o principal motivo por que comecei, porque a maioria das pessoas começa, mas tirar partido desta parte depende muito da companhia onde se trabalha, dado que muitas não têm estadias, e outras são tão curtas que não permitem grandes visitas. Para mim, um dos grandes aspetos positivos é o tempo livre e os horários flexíveis.  

Qual é o fator que ainda a surpreende?  

Sinceramente? Que com a banalização que houve nas últimas décadas das viagens aéreas, que os passageiros ainda não levem a sério as instruções de segurança. Elas existem pelo único propósito de manter as suas vidas seguras.  

Tem ideia de quantos países e cidades já visitou?  

Países, sei de cor porque estou sempre a fazer um tick mental sempre que adiciono um novo: foram 48. Cidades tive de pensar, mas se excluirmos Portugal, diria que à volta de umas 80 cidades nestes 48 países.   

Qual é o lugar que gostava de voltar?  
Lombok, na Indonésia.  

E aquele sítio que nunca mais regressaria?  
Não voltaria à Arábia Saudita porque foi um local onde vi retiradas as minhas liberdades básicas, como sair à rua sozinha, usar a minha própria roupa, entrar num restaurante sozinha e onde vi serem constantemente atropelados os mais básicos direitos humanos. 

Em que momento a assistente de bordo tem de desenvolver uma parte humana com o passageiro?  

A partir do momento em que o passageiro embarca. Receber um passageiro com um sorriso e uma receção calorosa faz toda a diferença. O passageiro não pode ser só mais um. É uma pessoa única, com uma jornada única, e que deve ser tratado como tal.  

Costuma ser rígida com o cumprimento das regras a bordo?  

A 100%. As regras existem para serem cumpridas, e como chefe de cabine gosto de dar o exemplo à minha tripulação. Para também garantir que eles o são. O não cumprimento das regras a bordo, pode levar a consequências drásticas. Uma regra que pode parecer banal, e não segui-la, parece não ter qualquer problema, especialmente para os passageiros, pode realmente fazer a diferença entre um desfecho feliz ou trágico, caso haja uma emergência. É também uma questão de criar hábitos, se nos habituarmos a seguir as regras e a fazê-las cumprir, menos incumprimentos acontecem em caso de fadiga ou pressão. É mais uma componente do CRM que falamos em cima. Claro que erros acontecem, porque não somos robots, mas sim humanos, mas é uma forma de os minimizar.  

Qual é o nível de responsabilidade que coloca a si mesma para garantir a segurança dos passageiros?  

Bastante alta. A minha responsabilidade a bordo é a segurança dos passageiros, dos meus tripulantes e dos pilotos, e tento sempre ao máximo liderar com isso em mente.  

Lembra-se de alguma situação em que não conseguiu cumprir o dever?  

Lembro-me de uma situação em que tomei uma decisão relativamente à recusa de embarque a um passageiro disruptivo, que posteriormente o comandante facilitou porque o passageiro pediu desculpa, e apesar de saber que devia ter sido mais assertiva e mantido a decisão de recusa mesmo com o comandante a permitir, não o fiz. Fiz um debriefing posterior em que expliquei ao Comandante o meu processo de decisão e porque o passageiro não devia ter embarcado, devido ao potencial comportamento disruptivo após descolagem, e ficou esclarecido, e reconhecido o erro por parte do comandante.  

Como tem reagido durante os voos sempre que pensa no aumento do número de acidentes aéreos neste ano?  

Sinceramente, não me incomoda. A aviação é extremamente segura se pensarmos nos milhões de passageiros que voam diariamente, e a percentagem que os acidentes representam, quando comparados com os de viação. Não nos sentimos apreensivos sempre que entramos no carro com medo de termos um acidente. Tento aplicar a mesma lógica no ar. Confio nos procedimentos, e que se algo acontecer eles serão postos em prática para tentar chegar ao melhor desfecho possível. No entanto, o que tenho consciência é o aumento provável da ansiedade nos passageiros, especialmente nos dias seguintes a uma notícia. Tento aumentar a minha empatia, e explicar o máximo possível aos passageiros mais curiosos e que costumam fazer perguntas.  

Concorda com a decisão que permite aos passageiros levarem uma bagagem de mão para dentro do avião?  

Concordo, dado que seria impossível eliminar totalmente a bagagem na cabine, devido a procedimentos de segurança. As regulamentações de transporte de artigos proibidos pelo ar, determina que muitos itens de uso comum são de transporte proibido no porão. Claro que se pensasse apenas na facilidade e praticidade, o embarque seria muito mais rápido sem malas. Há também a perceção errada de muitos passageiros que a mala de cabine tem que estar arrumada por cima do próprio assento, o que leva a alguns conflitos, atrasos e descontentamento, e até comportamentos altamente disruptivos. E no mundo da aviação diz-se que um avião no chão não gera dinheiro, percebo porque haja uma vontade generalizada das companhias aéreas de limitar o número de malas, mas também acho que os passageiros tenham direito a levar uma mala, mas desde que dentro das regras estabelecidas.  

Os cães também devem ir ao lado dos donos durante os voos?  

O transporte de animais de estimação varia muito de companhia para companhia, no entanto por razões de segurança tem de haver limites ao tamanho e peso do animal de estimação na cabine. O animal deve estar com o dono, dado que a transportadora ou o próprio animal (se for por exemplo cão-guia) tem de estar seguros exatamente nas mesmas alturas que os passageiros.  

Que mudanças têm sido aplicadas à tripulação?    

O negócio da aviação está em constante adaptação, para responder ao aumento do tráfego aéreo, às constantes disrupções existente, e também ao aumento da procura e da exigência do passageiro. E inevitavelmente isso acaba por se traduzir em mudanças à tripulação, como escalas menos estáveis, atrasos não esperados, etc. tem havido também um aumento exponencial dos comportamentos disruptivos a bordo por parte dos passageiros, o que leva ao aumento do stress e fadiga. Algumas companhias, melhor que outras, tentam colocar em prática sistemas que contrariem esta tendência. O tipo de mudanças é específico de cada companhia aérea e variam também de acordo com a legislação laboral de cada país.