Entrevista a Rita Ferreira Nunes

A Advogada e Diretora de Estratégia Jurídico-Operacional na Auto-Social entende que um dos principais problemas da justiça portuguesa continua a ser a falta de informação e a burocracia que desmotivam os cidadãos a procurarem mais apoio judiciário. Rita Ferreira Nunes não defende o fim da contestação e da réplica no Código do Processo Civil nem dos julgamentos nos tribunais superiores no processo penal devido ao princípio do contraditório, tendo também criticado as sanções aos advogados pelo não cumprimento dos prazos.
“A justiça portuguesa não precisa apenas de leis novas. Precisa de bom senso.”
A morosidade e os elevados custos de acesso continuam a ser os principais problemas da justiça em Portugal?
Já não tanto. Os custos de acesso à justiça — taxas, honorários, despesas — estão hoje mais mitigados graças ao programa de Apoio ao Direito e à Justiça, que permite a consulta jurídica, isenção ou pagamento faseado das taxas e nomeação de advogado oficioso. O verdadeiro entrave, no entanto, está na falta de informação e na burocracia para aceder a esses apoios: formulários quase indecifráveis e exigências documentais que desmotivam qualquer cidadão. Quanto à morosidade, piorou onde menos devia: nos processos administrativos, sobretudo nos que envolvem a AIMA. Tenho experiência direta — os processos correm no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa — e a demora é gritante. De resto, a maioria dos processos resolve-se em tempo razoável, salvo nos mediáticos, com dezenas de volumes e um desfile de testemunhas. Mas o cerne da questão está noutro lado: falta de meios técnicos e humanos. Investigadores, magistrados e pessoal de apoio — tudo escasso. E sem pessoas, não há justiça célere que resista a decretos.
Concorda que os problemas da justiça são um reflexo do que se passa no resto da sociedade portuguesa?
Não por culpa do cidadão, mas do próprio sistema. A Administração Pública portuguesa é um espelho da justiça: falta de recursos, processos antiquados e uma máquina pesada. Nos organismos que todos conhecem — IMT, AIMA, Registos e Notariado — a escassez de pessoal ativo é evidente. Discutimos números totais de funcionários públicos, quando devíamos discutir quantos estão realmente ao serviço. E há outro problema que quase ninguém menciona: a falta de formação. Temos estruturas envelhecidas, processos manuais e um sistema que resiste à modernização — e depois espantamo-nos que a justiça funcione devagar.
Quais foram as alterações às leis fundamentais que têm colocado em causa o funcionamento da justiça?
As alterações ao Código de Processo Civil de 2013 foram um marco. A ideia era boa: dar mais autonomia ao juiz e reduzir o formalismo. Na prática, a intenção de acelerar os processos esbarrou na falta de meios e na complexidade dos próprios casos. Ficámos com um processo mais rápido no papel, mas nem sempre mais eficiente na realidade. A celeridade só é virtude quando vem acompanhada de qualidade — e esse equilíbrio ainda não foi conseguido.
O Processo Civil seria mais célere se não houvesse a possibilidade de contestar ou replicar uma ação?
Seria mais rápido, sim. Mas não seria justiça. O contraditório é um pilar do Estado de Direito e retirar essa possibilidade seria violar direitos fundamentais. O problema não está na existência de réplica, mas no uso abusivo dela. E quando alguém tenta transformar o processo numa maratona de expedientes, o Código de Processo Civil já prevê sanções: multas por litigância de má-fé, rejeição de peças extensas sem motivo, etc. A justiça precisa de equilíbrio, não de pressa.
O fim dos julgamentos nos tribunais superiores tornaria o processo penal mais rápido?
Rapidez, talvez. Justiça, não. Os tribunais superiores são o mecanismo de correção natural do sistema. Eliminar essa instância seria fechar portas à revisão de decisões injustas ou ilegais. O recurso só se torna um problema quando é usado como manobra dilatória, mas o próprio processo penal já limita isso. O que falta não são menos instâncias: são decisões mais fundamentadas nas anteriores.
Deveria haver um teto máximo para as custas judiciais, ajustando o apoio judiciário à realidade económica das pessoas?
O sistema já prevê essa adaptação. Se o cidadão provar falta de meios, pode ter isenção ou pagamento faseado das taxas — e é isso que importa. O problema é outro: aceder ao mecanismo. Faltam simplificação, informação e orientação prática. Não é o valor das custas que afasta as pessoas; é a sensação de que o sistema foi feito para quem já o entende.
Por que razão os advogados continuam a ser os únicos agentes da justiça dependentes de prazos?
Porque somos os únicos que pagamos caro por falhar. Juízes e oficiais de justiça também têm prazos, mas as consequências são diferentes. Para nós, a perda de um prazo pode significar responsabilidade civil, disciplinar e, pior, o prejuízo direto do cliente. É uma pressão diária e invisível. A justiça portuguesa vive muito de prazos, mas pouco de consequências equilibradas.
Os magistrados deveriam estar sujeitos a prazos perentórios e cominatórios?
Na prática, só quando o cidadão ou o advogado força o sistema com queixa ao Conselho Superior de Magistratura ou outros mecanismos — é que as coisas avançam. O cumprimento dos prazos é um dos critérios de avaliação dos magistrados, mas o impacto real ainda é limitado. Enquanto os processos dependerem de estruturas lentas e falta de pessoal, falar em “prazos perentórios” será sempre um exercício teórico.
Qual é a sua conclusão sobre o funcionamento da justiça portuguesa?
O sistema de justiça português não precisa apenas de leis novas. Precisa de meios, formação e bom senso. E de uma mudança de mentalidade: perceber que modernizar não é só digitalizar — é fazer o sistema funcionar para as pessoas, e não o contrário.