Entrevista a Fernanda Pescador
A Consultora de Reabilitação Patrimonial & Projetos Culturais com Impacto Social garante que a cultura patrimonial em Portugal continua a ser rica e multifacetada, mas ainda tem muitos problemas para resolver, como a falta de visão estratégica e integrada, a escassez de recursos humanos e financeiros, bem como a lentidão e complexidade dos processos de licenciamento. Apesar de todas as dificuldades na manutenção de uma identidade na reabilitação dos edifícios, Fernanda Pescador, entende que existe uma vontade de preservar as tradições portuguesas, nomeadamente nas aldeias históricas.
"A vontade de manter as tradições portuguesas tem sido revitalizada"
Quais são as principais particularidades da cultura patrimonial em Portugal?
A cultura patrimonial em Portugal é riquíssima e multifacetada, refletindo milénios de história e intercâmbios culturais. As suas particularidades residem na densidade e diversidade do património, desde vestígios romanos e visigóticos, passando pela influência moura, a grandiosidade do gótico e do manuelino, até ao barroco exuberante e à arquitetura civil e industrial. É um património que abrange desde monumentos classificados pela UNESCO a saberes ancestrais e paisagens culturais únicas. Do ponto vista cultural, essa particularidade é a própria identidade nacional. O património não é apenas pedra e cal; são as festas, as tradições, a gastronomia, a língua - o que chamamos de património imaterial, que está intrinsecamente ligado ao material.
Que tipo de problemas encontrou durante a pesquisa que efectuou?
Durante diversas pesquisas para o meu trabalho e para metodologias que desenvolvi para a minha empresa Herança Futura Consultoria, encontrei alguns problemas recorrentes, que se manifestam de diversas formas em Portugal e noutros países lusófonos. Muitas vezes, a gestão do património está dispersa por diversas entidades (ministérios, autarquias, fundações, privados), o que dificulta uma visão estratégica e integrada. Apesar da valorização retórica, os recursos humanos e financeiros dedicados à conservação e reabilitação são muitas vezes insuficientes face à imensidão do património existente. Os processos de licenciamento, financiamento e execução de projetos de reabilitação podem ser excessivamente lentos e complexos, desmotivando investidores e proprietários. Embora haja bons profissionais, ainda existem lacunas na formação contínua e em áreas muito específicas da reabilitação e gestão de impacto. Por fim, muitos projetos de património não conseguem integrar verdadeiramente a comunidade envolvente, transformando o bem cultural num "museu" isolado, sem gerar impacto social e económico direto para os moradores.
Na sua opinião o que tem dificultado a reabilitação do património cultural em Portugal?
A reabilitação do património cultural em Portugal é dificultada por uma confluência de fatores, que abordo nos serviços que presto na minha consultoria. O elevado custo da reabilitação, a dificuldade de acesso a financiamentos (sejam fundos europeus, linhas de crédito bancárias ou investimento privado) e a lenta recuperação do investimento desmotivam muitos projetos. A crise económica recente e as flutuações do mercado imobiliário também tiveram um impacto negativo. A instabilidade governamental e as mudanças frequentes nas políticas de cultura e ordenamento do território criam incerteza jurídica e estratégica. A falta de visão de longo prazo e de articulação entre as diferentes tutelas é mais um entrave. A complexidade dos licenciamentos, as exigências regulamentares rigorosas (por vezes excessivas para a realidade dos pequenos proprietários) e a lentidão dos processos administrativos são frequentemente apontadas como os maiores obstáculos. Embora haja reconhecimento do valor do património, por vezes falta uma cultura de investimento privado que vá além do retorno imobiliário imediato, focando-se no impacto social e cultural a longo prazo. Há também uma certa resistência à inovação nas metodologias de reabilitação.
De que forma o património funerário pode contribuir para fortalecer a identidade e a cultura local?
O património funerário é uma janela fascinante para a identidade e a cultura local, e a sua reabilitação e valorização podem ter um impacto social e cultural muito profundo. Os cemitérios históricos, por exemplo, são verdadeiros museus a céu aberto que contam as histórias das comunidades, das suas crenças, da sua arte e da sua organização social. Costumam ser repositórios da memória coletiva, guardando as histórias de gerações, famílias, personalidades locais e eventos históricos. A reabilitação permite que essas histórias sejam contadas, fortalecendo o sentido de pertença e a identidade de uma comunidade. Túmulos, jazigos e capelas são muitas vezes obras de arte que refletem estilos arquitetónicos e escultóricos de diferentes épocas. A sua preservação é a preservação da expressão artística e cultural de um povo. Se os cemitérios históricos forem bem geridos podem ser pontos de interesse turístico, atraindo visitantes que gostem de história, arte e genealogia. Estes aspetos geram um impacto económico para a localidade. Em último lugar, podem ser espaços para atividades educativas, rotas temáticas e eventos que promovem a reflexão sobre a vida, a morte e as tradições locais, enriquecendo o diálogo cultural da comunidade.
Os portugueses têm pouca preocupação com a preservação do património cultural?
Não diria que os portugueses têm pouca preocupação. A relação é mais complexa e ambivalente. Há um profundo orgulho do património e uma noção do seu valor intrínseco, especialmente em momentos de celebração ou ameaça. No entanto, a preocupação nem sempre se traduz em ação coletiva ou individual consistente, e é aí que reside o desafio. Muitos valorizam, mas a responsabilidade pela preservação é muitas vezes delegada ao Estado ou a terceiros. Para o cidadão comum, a preservação de um imóvel antigo pode ser financeiramente inviável, mas nem sempre é garantido o retorno financeiro das empresas. A complexidade dos processos de reabilitação pode desmotivar os proprietários privados. Por vezes, a falta de conhecimento sobre o valor histórico ou artístico de certos bens (especialmente os menos óbvios) leva à sua degradação ou destruição. O meu trabalho na Herança Futura Consultoria procura exatamente colmatar essa lacuna, mostrando que a preservação pode ser viável, estratégica e gerar impacto social e económico.
Acredita que ainda existe uma vontade de manutenção das tradições portuguesas na construção dos edifícios?
Sim, acredito que a vontade de manter as tradições portuguesas na construção dos edifícios ainda existe e, em muitos casos, tem sido revitalizada. No entanto, esse desejo coexiste com os desafios da modernidade e da viabilidade económica, nomeadamente em projetos de reabilitação porque há uma clara preferência por manter a traça original e utilizar técnicas e materiais que respeitem a arquitetura tradicional, especialmente nos centros históricos. Há uma valorização da autenticidade e da memória dos edifícios. Em novas construções, a vontade é mais variada. Apesar de haver tendências para a arquitetura contemporânea, também existe uma busca por elementos que remetam à 'portugalidade'- seja por meio de materiais (azulejo, pedra), tipologias (pátios, varandas tradicionais) ou até mesmo o urbanismo que respeita a escala e a identidade local. As próprias políticas de património e planos de urbanização locais incentivam ou exigem a manutenção de certas características tradicionais. Para o turismo e para o mercado imobiliário, a identidade portuguesa na arquitetura é um valor acrescentado, o que incentiva a manutenção dessas tradições.
Consegue identificar a localidade portuguesa que ainda consegue respeitar o impacto cultural?
É difícil nomear uma única localidade, porque o respeito pelo impacto cultural é um desafio contínuo e multifacetado, com sucessos e falhas em muitos lugares. No entanto, algumas localidades demonstram um esforço notável e um modelo mais integrado. Muitas aldeias históricas de Portugal no centro do país (como Monsanto, Belmonte, Idanha-a-Velha) são exemplos como a comunidade, as autarquias e o investimento (muitas vezes público-privado) trabalham para manter a traça original, revitalizar ofícios tradicionais e integrar o turismo de forma sustentável, gerando impacto económico direto para os residentes. O desafio é evitar a "museificação". Outras cidades, como Évora (Património UNESCO), Guimarães, e até certas zonas de Viana do Castelo, têm desenvolvido políticas de reabilitação que tentam conciliar a modernidade com a preservação da identidade cultural, envolvendo a comunidade e o pequeno comércio. Pela sua insularidade, algumas comunidades madeirenses e açorianas mantêm fortes tradições e um património cultural material e imaterial muito vivo, havendo um esforço para que o desenvolvimento (nomeadamente turístico) respeite essa singularidade
Como é que as mudanças culturais podem originar um impacto social na vida das populações?
As mudanças culturais são catalisadores poderosos de impacto social, tanto positivo quanto, por vezes, desafiador. No plano positivo, a redescoberta de tradições, a criação de novos espaços culturais ou a reabilitação de património podem trazer um novo fôlego para comunidades, gerando orgulho local, união e um sentido de pertença mais forte. Também existe lugar para as novas expressões culturais ou a reinterpretação de antigas poderem gerar novas oportunidades económicas e sociais, como o desenvolvimento de artesanato contemporâneo, turismo criativo ou projetos de educação cultural. A arte e a cultura têm um poder imenso em promover a inclusão de grupos marginalizados, combater preconceitos e abrir espaços para o diálogo e a compreensão mútua entre diferentes culturas ou gerações. O acesso à cultura e a participação em atividades culturais são comprovadamente benéficas para a saúde mental e o bem-estar das populações. Os desafios que se colocam são três, nomeadamente, o sucesso da reabilitação cultural que pode levar à valorização imobiliária, expulsando a população residente original e alterando a composição social e o carácter autêntico de um bairro. A globalização ou a busca por um "produto cultural" padronizado pode originar a perda de singularidades locais e à diminuição da diversidade cultural. Em último lugar, a massificação do turismo cultural, por exemplo, desvirtua o sentido original do património e transformar espaços culturais em meros cenários.
Existe um desconhecimento da história portuguesa por parte dos responsáveis pela gestão do património português?
Diria que não é tanto um desconhecimento generalizado da história, mas sim uma lacuna na profundidade e na aplicação desse conhecimento à gestão prática do património, e por vezes, uma desconexão entre o conhecimento académico e a realidade do terreno. Os responsáveis, em geral, têm uma formação académica sólida. No entanto, a história portuguesa é vasta, e a especialização em áreas muito específicas do património (arqueologia, arquitetura de determinada época, sociologia do património, etc.) pode levar a uma visão fragmentada. O conhecimento histórico foca muito no "o que é" o património e "de onde veio", mas a gestão do património exige também o "como" intervir, "como" financiar, "como" envolver a comunidade, "como" comunicar o valor. É uma transição do conhecimento histórico para gestão de projeto de reabilitação estratégica e social. Mesmo com um profundo conhecimento histórico, os gestores podem estar limitados por pressões políticas, orçamentais ou prazos que comprometem a aplicação ideal desse conhecimento em decisões de reabilitação ou valorização. Talvez o maior "desconhecimento" seja sobre o potencial de gerar impacto social e económico real a partir do património, para além da sua mera conservação física. É aqui que a minha consultoria entra, transformando esse conhecimento histórico em valor contemporâneo e sustentável.
O que pretende alcançar com a criação do MAPA VIVO?
A minha empresa Herança Futura Consultoria, oferece diversos serviços, dentre eles com a metodologia MAPA VIVO pretendo capacitar empresas e entidades governamentais em países lusófonos para que os investimentos em património, cultura e social não sejam apenas um gasto, mas um ativo estratégico com impacto comprovado. Em primeiro lugar, através da metodologia rigorosa, conseguimos quantificar os benefícios sociais e económicos, utilizando métricas como o Retorno Social do Investimento (ROI) e alinhando os resultados aos ODS/ESG da ONU. Indo além do invisível, revisitando o valor mensurável de cada ação. O segundo objetivo passa por propomos planos práticos para otimizar o impacto, superando os desafios burocráticos e de gestão identificados no setor com base nos dados recolhidos e nas pesquisas exclusivas efetuadas. Também preparamos os projetos para atender às exigências de transparência e impacto de grandes programas de financiamento (como o Portugal 2030) e de investidores, garantindo a sua sustentabilidade financeira. Por último, capacitamos equipes internas para gerir e comunicar o impacto, assegurando que o património cultural não seja apenas uma herança do passado, mas um ativo vivo e dinâmico que construa um futuro próspero e equitativo para as comunidades lusófonas.