Entrevista a Cátia Ornelas

07-10-2025 14:55

O trabalho realizado pela investigadora voltou a ser alvo de destaque, desta vez por uma das mais prestigiadas universidades científicas do MundoCátia Ornelas mostra-se satisfeita pela distinção que valoriza o trabalho feito na academia, mas agora está mais focada no novo papel de empresária na área da ciência 

 

"Espero é que este tipo de reconhecimento contribua para abrir portas a novas oportunidades de financiamento para os meus projetos e ideias" 

  

Qual foi a primeira reação que teve após ter entrado no top 2% dos cientistas mais influentes do mundo pela Elsevier and Stanford University 

Entrei no ranking em 2020 e fiquei naturalmente muito satisfeita e orgulhosa. Na época ainda era Professora Universitária no Instituto de Química da UNICAMP, em São Paulo, no Brasil, cargo que deixei em 2023. Foi um momento de reconhecimento por muitos anos de trabalho intenso em investigação científica realizada em vários países (Portugal, França, EUA e Brasil), publicações em revistas científicas de alto impacto e colaborações com outros investigadores a nível global. Senti que todo aquele percurso académico estava a ser valorizado internacionalmente, e isso foi muito gratificante. Mas, como acontece com qualquer prémio ou distinção, a satisfação é breve. Rapidamente voltei a concentrar-me no trabalho, nos projetos em curso e nos desafios seguintes. Desde então, mantenho-me no ranking há cinco anos consecutivos, o que continua a ser motivo de orgulho. No entanto, o meu foco evoluiu. Atualmente, estou mais dedicada à investigação translacional, procurando transformar o conhecimento científico acumulado ao longo da minha carreira em soluções práticas, com impacto real na sociedade, seja através da criação de novos materiais, produtos, tecnologias ou processos mais sustentáveis. 

Que tipo de influência pode ter esta distinção na sua carreira profissional? 

Esta distinção certamente valoriza o currículo e tem um impacto positivo na forma como o nosso trabalho é percecionado, seja no LinkedIn, em propostas de colaboração, em parcerias com empresas ou universidades, ou em candidaturas a novos projetos. No entanto, na prática, o que mais espero é que este tipo de reconhecimento contribua para abrir portas a novas oportunidades de financiamento para os meus projetos e ideias. Acredito que, num cenário altamente competitivo, contar com indicadores de impacto científico ajuda a reforçar a credibilidade dos projetos e das equipas de investigação. Mais do que um título honorífico, vejo esta distinção como uma ferramenta que pode facilitar a concretização de ideias e acelerar o caminho entre a ciência e a sua aplicação no mundo real. Porque, no fundo, o verdadeiro impacto de uma carreira científica não se mede apenas em números e rankings, mas na capacidade de transformar conhecimento em mudança e sonhos em soluções que tocam vidas. 

Por que razão esta distinção tem maior significado do que as anteriores? 

Não considero esta distinção mais importante do que outras que recebi ao longo da minha carreira. Cada reconhecimento tem o seu contexto e valor. Já tive a honra de receber alguns prémios e distinções marcantes, entre os quais destaco o Burgen Award, atribuído pela Academia Europeia em 2011, quando era investigadora nos Estados Unidos. Mais recentemente, em 2025, recebi o prémio Inventores 2025 (pela INOVA - Brasil), em reconhecimento pelas patentes que registei até hoje, cinco no total, sendo uma delas já licenciada. O ranking do top 2% avalia o impacto científico com base em métricas quantitativas, como o número de publicações e de citações, numa tentativa de medir o impacto da ciência desenvolvida por cada investigador. É, sem dúvida, uma forma de visibilidade importante, mas que não abrange outros indicadores igualmente relevantes, como o registo de patentes, a transferência de tecnologia ou o impacto social da investigação. Na ciência trabalhamos na fronteira do conhecimento, e isso implica lidar frequentemente com a frustração: experiências que não funcionam como esperávamos, projetos que não são aprovados, artigos que passam por múltiplas recusas até serem publicados. Todos nós, investigadores, conhecemos bem esse percurso. Por isso, quando conseguimos um avanço, uma publicação, uma patente ou qualquer distinção ou prémio, independentemente da sua natureza, acredito que devemos parar por um momento, celebrar e reconhecer o valor do caminho percorrido. São esses momentos que nos inspiram a continuar. Porque a ciência não é feita apenas de resultados, mas de resiliência, esperança e da coragem de continuar a fazer perguntas, mesmo quando o mundo ainda não tem as respostas. 

Quais são os desafios que tem enfrentado como fundadora e CEO de uma empresa de I&D? 

O maior desafio tem sido, sem dúvida, o lado financeiro. Ao transitar do meio académico, onde era Professora Universitária com um salário fixo e relativamente confortável, para fundadora e CEO de uma empresa de I&D, deixei de ter essa segurança mensal para assumir um conjunto de responsabilidades financeiras constantes. É uma mudança de paradigma. Por isso, considero essencial ter uma “almofada” financeira antes de embarcar numa aventura empreendedora desta natureza. Além disso, a ciência experimental é, por definição, dispendiosa. Trabalhar com investigação aplicada requer acesso a equipamentos sofisticados, reagentes caros e, sobretudo, tempo. O retorno financeiro em I&D raramente é imediato; são necessários vários anos até desenvolver uma tecnologia, validar um produto e conseguir levá-lo ao mercado com valor comercial real. Outro desafio significativo é a alta competitividade dos projetos europeus (Horizon Europe, EIC, ERC) de financiamento à ciência e inovação. Muitos dos grandes projetos, que poderiam permitir avanços disruptivos, têm taxas de aprovação muito baixas, entre 5% e 10%. Isso exige não só excelência técnica, mas também uma grande capacidade estratégica e uma resiliência constante para enfrentar os longos ciclos de candidatura e avaliação. Mas acredito que os maiores desafios trazem também as maiores oportunidades. Porque quem investe tempo, coragem e conhecimento em ciência e inovação está, na verdade, a semear o futuro. Mesmo que os frutos demorem a nascer, vale sempre a pena plantar. 

Que tipo de soluções científicas já conseguiu desenvolver como empresária? 

Ainda é um pouco cedo para responder a essa pergunta de forma definitiva, uma vez que a minha empresa é relativamente recente e muitas soluções em investigação e desenvolvimento exigem tempo até atingirem um nível de maturidade comercial. No entanto, já temos alguns avanços promissores. Desenvolvemos um processo industrial sustentável na área alimentar, com potencial de aplicação em larga escala, e estamos neste momento em processo de redação da patente. Também estamos a desenvolver um produto baseado em nanotecnologia com aplicação em agricultura sustentável, e participamos num projeto financiado pelo PRR focado no desenvolvimento de embalagens biodegradáveis para o setor da hotelaria, com impacto direto na redução de plásticos descartáveis. Na área da nanomedicina, que continua a ser a minha verdadeira paixão, temos resultados preliminares muito encorajadores, mas ainda estamos numa fase inicial, devido à falta de financiamento adequado que este tipo de investigação exige. Acredito que estas primeiras sementes científicas já lançadas poderão, com o tempo e o apoio certo, transformar-se em soluções concretas que respondam a desafios reais da sociedade. 

Como classifica o trabalho realizado na academia? 

O trabalho académico tem um papel essencial na construção do conhecimento e no avanço da ciência. Durante os anos em que estive na academia, tive a oportunidade de orientar estudantes, liderar projetos de investigação e participar ativamente na formação de novos talentos científicos. São experiências enriquecedoras que valorizo profundamente e que moldaram a minha forma de pensar e trabalhar. No entanto, também identifiquei alguns desafios estruturais que, na minha visão, limitam o impacto da ciência fora do meio académico. Em muitos contextos, a academia está excessivamente envolvida em burocracias, reuniões, comissões de avaliação e tarefas administrativas que acabam por consumir tempo e desviar o foco do que realmente importa: investigar, criar e inovar. Além disso, em praticamente todos os países onde trabalhei, reparei que a propriedade intelectual continua a ser um tema pouco explorado no ensino das ciências. Raramente há formação específica sobre patentes, proteção de invenções ou transferência de tecnologia. Por isso, o caminho seguido acaba por ser, quase sempre, a publicação científica imediata dos resultados, o que, apesar de necessário para o avanço do conhecimento, pode dificultar a proteção intelectual das descobertas e comprometer futuras parcerias com empresas ou o avanço de soluções até ao mercado. Acredito que a academia tem um enorme potencial para gerar inovação com impacto real, mas para isso precisa de integrar, desde cedo, uma cultura de valorização do conhecimento como ativo estratégico, não apenas científico, mas também social e económico. 

O que ficou por descobrir como investigador principal? 

Ficou tudo por descobrir. A sensação de incompletude é constante na vida de quem faz ciência…e é isso que nos move. Parafraseando um pensamento atribuído a Isaac Newton:“What we know is a dropwhat we don’t know is an ocean”(“O que sabemos é uma gota, o que não sabemos é um oceano”). Por mais que avancemos, há sempre novas perguntas, novos mistérios e novas fronteiras do conhecimento à espera de serem exploradas. Como investigadora principal, pude contribuir com algumas gotas. E agora, enquanto fundadora e CEO de uma empresa de I&D, continuo esse percurso, procurando transformar cada pequena descoberta em algo com impacto real. Porque cada gota conta… e juntas, ajudam a construir o oceano. 

A publicação de artigos em revistas da especialidade será sempre a melhor forma de manter a ligação à comunidade científica?  

A publicação de artigos científicos continua a ser uma forma importante de manter a ligação à comunidade académica, mas certamente não é a única. Embora continue a publicar alguns artigos em revistas da especialidade, hoje em dia contribuo de outras formas igualmente relevantes. Atualmente, estou a trabalhar na escrita de um livro científico e exerço funções editoriais em duas revistas internacionais da área, o que me permite participar ativamente no processo de avaliação, aceitação ou rejeição de artigos. Este papel de editora não só me mantém ligada aos avanços mais recentes da investigação, como também me permite contribuir diretamente para a disseminação de ciência de qualidade. Acredito que a ligação à comunidade científica pode assumir diferentes formas ao longo da carreira, e todas são válidas desde que promovam o rigor, a integridade e o progresso do conhecimento. Porque, mais do que publicar, é fundamental continuar a dialogar com a ciência: escutá-la, questioná-la e ajudá-la a crescer.